quarta-feira, 1 de abril de 2009

A Alma Furtada


Gritos de donzela na noite chuvosa vem de dentro de uma carruagem da cor negra que percorre a estrada sombria e se dirige para a um castelo ameaçador coberto de nuvens, raios e trovões. A ponte levadiça desce para dar passagem ao transporte macabro que cruza depressa carregando a pobre moça rumo ao desconhecido. Pessoas com aparência estranha, unhas grandes e sujas, pele pálida e lábios pretos, algumas com máscaras outras deixam a vista cicatrizes na face. Com gestos abomináveis, a tocam e a molestam, falam dialeto desconhecido, se dirigem à masmorra conduzindo a moça que está apavorada e pedindo ajuda. Chegam a um ambiente tenebroso e imundo composto de máquinas de tortura, corpos ainda em decomposição pendurados e ossadas espalhadas por todo e recinto, com o perfume insuportável da morte, o que caracteriza um ritual recém celebrado. De repente as figuras olham parecendo cultuar uma mulher encapuzada vestida de branco,descalça, descendo lentamente pela escada, a personagem nebulosa se aproximou da jovem, retirou o capuz e com ar doce ordenou que a olhasse nos fundos dos olhos, a moça deu um leve sorriso desconfiado, como se por um instante não temesse a sua presença e aparentando conhecê-la, exprime o mínimo de confiança, almejando sair intacta daquela situação. Ao olhar para a cândida dama aparentemente angelical se viu hipnotizada, muda e sem perceber que estava sendo despida, amarrada a uma máquina de tortura pelos súditos vassalos, não conseguia gritar ou reagir ao ver o seu pulso sendo cortado e seu sangue indo parar em uma banheira enfeitada com pétalas de rosas brancas em contraste com o líquido vital onde a mulher se prepara para adentrar. Todos riem e se divertem olhando a pobre virgem agonizar, sofrer e morrer enquanto bebem o seu sangue em taças cristalinas.

Mais uma vez ela desperta de um pesadelo que a atormenta constantemente, noite após noite se vê entranhada nas más lembranças de sua mente, lembranças que a acometem sem se quer jamais ter acontecido realmente, jogando-a em uma trama de puro escárnio com a vida alheia, mostrando outra Elizabeth que ela desconhece. Uma mulher má sem qualquer sentimento de compaixão e com ar de imponência abrasiva emanando uma áurea pesada, amaldiçoando tudo que toca. A cobiça está sempre presente em seu olhar atilado capaz de desorientar qualquer pessoa sã abatendo seu coração ao introduzir sentimentos ruins como o da coragem finda de um herói derrotado. Elizabeth tenta se acalmar e afirmar que nunca seria capaz de promover atos de crueldade tamanha, ao mesmo tempo em que se indaga sobre se isso seria possível acontecer algum dia ou pode se tratar de visões do que ela poderá vir a se tornar. Sente pena de si por passar em sua mente, mesmo que em sonhos ruins, algo tão medonho. O seu coração palpita cada vez mais rápido à medida que fecha os olhos e relembra as cenas que tenta esquecer mais não consegue. Então decide levantar-se, lavar o rosto e ao olhar-se no espelho percebe que está mais pálida que o habitual além de estar suando frio. As luzes das velas enfadadas pelo soprar do vento patrocinam o ambiente envolvente ao tremular, as sombras que percorrem o seu quarto parecem brincar fugindo da luz denegrida que fraqueja aos poucos, querem se revelar para Elizabeth sussurrando em seus ouvidos. As velas que são sua singela proteção logo fraquejam e apagam assoladas pela força do vento, o ar se torna mais denso e difícil de respirar pela influência dos visitantes que estão espalhados pelo seu aposento, pairando por todo o recinto, ela se põe a chorar de pavor por estar só e a sua única saída é olhar para o espelho novamente, e ao fazer-lo percebe lágrimas de sangue em seu rosto imaculado. Acuada em vão tenta gritar com todas suas forças e movida pelo pavor desmaia sem fôlego.

A luz do sol toca seu rosto a fazendo despertar desamparada no chão, levanta e olha desconfiada seu reflexo no espelho e para sua alegria constata que o que vira na madrugada fora apenas um pesadelo. Aliviada vai em direção a sacada contemplar a vista, de lá tem a visão de todo seu domínio, seus criados a cuidar de seu jardim e fontes, e da pequena vila feudal a qual herdou de seu pai. Mais uma vez ela chora por conta das lembranças tristes enquanto uma mão de súbito a toca lhe trazendo afago tentando mandar para longe o que a aflige.

_ Criança porque chora logo pela manhã? Não chore! O dia está lindo lá fora, perceba. Diz sua tutora a enxugar suas lágrimas.

_ Ingrid tive outro pesadelo, nele sou má! Você me acha uma pessoa má?

_ Claro que não minha criança, ninguém te conhece mais do que eu a não ser...

_ A não ser quem?

_ A não ser você mesma querida. Obvio! Disse Ingrid com um sorriso no rosto na esperança de contagiar Elizabeth.

_ Não sei, acho que não sei quem sou e na realidade nunca soube. Temo merecer este tipo de castigo pelo o que aconteceu logo quando nasci.

_ Não diga isso Elizabeth, você não teve culpa, ninguém teve culpa, aquilo foi obra do destino.

_ Nunca conquistei nada nessa vida, tudo que tenho é o que meu pai me deixou, mas o principal que era o seu amor e carinho eu não consegui ter, agora ele se foi. O fato é que a tristeza me consome, e às vezes quero sumir ou morrer, me jogar do topo da torre alçando vôo cortando o vento e caindo nos braços da morte.

_ Não fale isso eu te imploro!

_ Não tenho motivos para viver, o meu pai por minha culpa abdicou da sua nobreza e preferiu morrer igual a qualquer colono jogando-se do despenhadeiro no dia do Decano Attio.

_ Querida, esqueça isso, olhe para frente, você é bela e jovem, tem um grande futuro pela frente. Deve se preocupar com quem vai escolher dentre os pretendentes, e para isso tem que estar mais linda e bela do que nunca, começando com um bom café da manhã que te preparei.

_ Agora isso! Não sei se quero me unir a alguém.

_ Claro que quer! Você vai adorar ter uma pessoa ao seu lado para espantar a solidão e preencher o lugar dessas idéias bobas, terá sua chance de ter uma família feliz. Além do mais pelo bem do seu povo terá que ter um esposo honrado ao seu lado para reger Moire.

_ Terei que fazer aquilo que meu pai planejou antes de morrer.

_ Vamos anime-se, temos muito que fazer. Hoje planejei passear pelos campos. A temporada das flores chegou.

Conde Hérbio ele nunca a amou por acreditar que ao nascer Elizabeth privou a vida de sua mãe em um infortúnio parto complicado, por isso a criou com total desprezo, deixando-a de lado entregando a sua educação a Ingrid. Ela tentava, conforme ia crescendo, conquistar aquilo que jamais teria. Após a morte de sua esposa nunca mais foi o mesmo, caiu em amargura, passava a maior parte do dia bêbado e entregou a administração de suas posses ao seu pupilo Edgard, pessoa amarga que só pensava em fortuna e poder, um exímio manipulador e excêntrico detalhista, a sua única virtude é adorar o conde como a um pai, tem enorme gratidão por ele e segue a risca todas as suas ordens prestando total obediência. Durante a sua infância e adolescência marginalizada, passou fome perambulou por Moire, tendo que até roubar frutas no mercado para sobreviver, e ao ser pego era espancado pelos comerciantes e até forçado a comer lixo, quando não chegava com nada no bolso para oferecer para aos mendigos com quem andava, apanhava, era posto para dormir longe do grupo e da fogueira que abrigava todos do frio na antemanhã. De um modo nada didático dessa forma ele foi crescendo e sobrevivendo, almejava estar no castelo junto ao senhor feudal, por várias vezes quando a fome apertava fechava os olhos e sonhava estar entre os poderosos daquele vilarejo. Quando via algum senhor bem vestido aparentando pertencer à realeza avançava oferecendo seus préstimos mais ninguém o dava atenção, sendo tratado igual a um animal qualquer. Mais o seu destino mudou quando na cobrança mensal de impostos o senhor feudal compareceu para acompanhar de perto o recolhimento dos tributos, a chance perfeita surgiu para Edgard, quando uma mulher chorava escandalosamente suplicando que não levassem seu marido para masmorra por não possuir o dinheiro da taxa, os outros cidadãos nada satisfeitos em fila colocavam as moedas dentro do saco nas mãos do diácono, a mulher continuava com seu planto distraindo a todos quando duas moedas caíram fora do saco, uma caiu aos pés do corrupto recolhedor que com um gesto mais que depressa pisou na moeda tentando encobrir o seu furto e a outra saiu rolando pelo chão até parar aos pés do jovem Edgard, que sorte do nosso pequeno rapaz massacrado pela sociedade, já que ninguém notou o trocado ali caído, a não ser o Conde Hérbio que de longe com olhos bem abertos notou toda a desordem e ficou calado esperando apenas constatar a intenção do mancebo e do seu empregado. O instinto de Edgard falhou nesse momento, o que aprendera em toda sua curta vida era apenas a compulsão de roubar e obter vantagem sobre os outros, mas apanhou o dinheiro e não pensou duas vezes, aproximou-se humildemente do senhor feudal entregando-lhe a moeda com uma mão e com a outra apontou para os pés do diácono. O Senhor feudal abriu um sorriso e tomou para si o rapaz apenas por essa crédula conduta, em seguida perguntou a ele qual seria o destino do ladrão, o jovem timidamente exclamou em tom de voz baixa quase sussurrando, apenas o Lorde ouviu, mais logo repetiu com total autoridade:

_ Cortem as mãos dele! Disse o Conde Hérbio tomado por cólera.

Seu decreto foi atendido prontamente, o corrupto implorava misericórdia enquanto perdia os membros e logo em seguida foi largado a esmo para morrer sangrando, dessa forma todos puderam ver a face sangrenta e impiedosa do senhor feudal, desde aquele instante influenciado pelo jovem e tímido consiliário. Foi um perfeito liame, pode-se dizer que a partir dali um completou o outro. Edgard precisava de um resgate, alguém que pudesse ver esperteza em seu ser, alguém que aprimorasse suas qualidades e visse algo bom em sua gana, porém conseguiu mais que isso, obteve um pai. O Conde precisava de alguém que despertasse nele a razão para viver novamente, alguém que o fizesse emergir do poço da aflição, sair do escuro e distribuir a dor que sente para todos. Depois de ver o sangue do homem derramando por uma ruela, não quis mais se condenar pela morte de sua esposa guardando para si a dor, resolveu externar esse desgosto para quem merecesse, ele aspirou distribuir essa amargura e esse sofrimento só não sabia como.

O tempo passou Edgard foi ganhando cada vez mais espaço nas decisões de Moire. Agora bem diferente de antes, cresceu e se tornou um homem aristocrático, mais por dentro não esquecera o seu passado e faz qualquer coisa para massacrar a plebe, teve realmente o que sonhara anteriormente. Sua vida mudou tornou-se a segunda pessoa mais importante daquele lugar, nada era decidido sem a sua palavra e o Conde Hérbio cada vez mais entregava a regência nas mãos do seu pupilo. Fechando os olhos para suas maldades e virando as costas para o seu povo. Um colocava em prática sua vingança e o outro queria ver a dor que sentia no semblante dos colonos.

Durante séculos sempre posteriormente à farta colheita era celebrada a tradicional cerimônia do Decano Attio, nesse rito todos os idosos de Moire se atiravam espontaneamente no precipício ao completar oitenta anos naquele período. Procuravam dessa forma agradecer os espíritos com o sacrifício. A cidade toda afamava esse evento, acreditavam ser uma dádiva chegar a essa idade e doar sua vida para agradecer os deuses, todos se reunião para ver seus entes caírem para o descanso eterno. Os únicos a terem o privilégio de esperar pela morte após esse tempo de vida era a fidalguia. Durante a consagração daquele ano, o Conde Hérbio aparentava estar fora de se, mal pôde dar o aceno da iniciação celebre podia-se ver que algo o arrebatava, seu olhar estava no horizonte e sua mente em outro lugar, ao seu lado direito estava sentada Elizabeth e do outro se posicionava em pé Edgard. Enquanto os anciãos se posicionavam para pular Conde com as pernas trêmulas parecendo estar com a razão arrebatada olhou para os lados, deu o primeiro beijo afetuoso na face de Elizabeth entregando-lhe a coroa e pediu a Edgard que cuidasse dela acima de tudo, levantou e foi em direção ao precipício balbuciando palavras ao vento respondendo como se algo o chamasse, sem que ninguém entendesse sua real intenção, empurrou afoitamente alguns idosos que estavam em seu caminho e pulou de súbito abraçando simplesmente o nada. Elizabeth ainda afetada pela súbita e repentina demonstração de afeto permaneceu sentada apenas deixando escapar uma lágrima. Edgard ajoelhou-se estendendo os braços atrevendo-se a clamar “Pai! Não Vá!” Demonstrou sofrer mais do que a púbere monarca, que permaneceu altera com seus lindos olhos azuis abertos observando as cenas atentamente. Ninguém entendera aquela reação do Conde Hérbio, a aristocracia parecia desabar com ele. Edgard recuperou a razão dentre os milhares de presentes, segurou a mão de Elizabeth forçando-a levantar tomou a coroa e depositou-a em sua cabeça tentando salvar a linhagem aristocrática. Logo após que todos prestaram clemência à nova Condessa ordenou que continuassem com a sagração.

Ainda em queda livre, Conde Hérbio recobrou a consciência e tentava se agarrar em vão, muitas lembranças do passado enchem sua mente, a única coisa que poderia fazer seria parar de se debater e entregar-se ao fim iminente quando não sabe como é arrebatado por alguma força que amortiza sua queda mais ainda assim o conduz para o solo. Ainda sem entender intrigantemente começa a observar tudo a sua volta, vê a imagem do caos e carnificina, lobos alimentam-se dos carpos ali desembaraçados alguns ainda gemendo de dor perante a queda que não foi suficiente para acabar com seu suspiro vital, olha para o céu e constata que não só os lobos fazem sua companhia os abutres e corvos aguardam a sua vez no banquete cruento, de volta ao solo em meio aquele panorama tenta escapar para não ser devorado como os cadáveres logo alguns indivíduos surgem da mata densa junto com uma figura algoz que flama a atenção do nobre ancião, as criaturas que se preparavam para dar o bote no indefeso senhor foram interrompidas perante a presença dos malignos logo se afastam demonstrando temor imenso, permanecendo a espreita.

_ Reuga! Como pode ser? Deveria ter imaginado que estava por trás disso. Exclamou Lorde Hérbio com tamanha surpresa.

_ Sim velho. Um mero cristal jogado no fundo do pântano não poderia me aprisionar pela eternidade. Vejo que não me esqueceu depois desses anos todos.

_ Como poderia me atrever a esquecê-la, mesmo estando forjada de amplo poder naquela época sua derrota em nossa peleja foi a minha grande vitória sua bruxa senil.

_ Como sempre se apega ao passado o mago que te protegia você mesmo expulsou de suas terras e dessa vez o seu corpo não está fechado para os meus feitiços, posso sentir seu coração clavado de maldade impura plantada por mim desde o dia da morte de sua querida Hellen. Que pena! Não consegui me apoderar do seu corpo sedoso e cheio de vida, então tive que usar-la como peça para algo posterior. Foi triste perdê-la não foi querido? Posso sentir o cheiro do sofrimento exalando em sua pele. Disse Reuga com nuança pervertida sentindo prazer ao revelar ter sido a responsável pela morte da mãe de Elizabeth.



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Sou um cara sonhador, acredito na bondade do ser humano e na roda da vida, pois desta ninguém pode fugir, já que o mundo dá voltas. Sou muito inquieto, teimoso e ciumento, não gosto da solidão. Meu defeito é atribuir a minha felicidade à de quem está a minha volta, da seguinte forma, se você está feliz eu também estarei e aprendi a duras penas que a vida não é assim, tento fugir dessa falha mais por ser teimoso acabo não abrindo mão dela.

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